As cotas no trabalho e a perspectiva ESG

Por Mariana Machado Pedroso

A Declaração Universal dos Direitos Humanos, promulgada 74 anos atrás, trouxe, em seu texto, a garantia ao trabalho como preceito fundamental. Em seu artigo 23º, afirmou que “Todo ser humano tem direito ao trabalho, à livre escolha de emprego, a condições justas e favoráveis de trabalho e à proteção contra o desemprego“.

Em mesmo sentido, em 1988, foi expressamente inserido na Constituição Brasileira o direito ao trabalho como uma garantia social: “Art. 6º — São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição”.

Não há dúvidas, portanto, sobre a importância do trabalho para que seja integralmente garantida a dignidade da pessoa humana, princípio também trazido na Constituição.

No entanto, ainda que constitucionalmente garantido tal direito, grande parte da população brasileira não consegue exercê-lo em sua plenitude pelos mais diversos fatores como, por exemplo, falta de vagas em decorrência desaceleração econômica e automatização por meio da qual são as pessoas substituídas por máquinas.

Além desta garantia, também trouxe a Constituição brasileira o dever para que a família, a sociedade e o Estado brasileiro assegurem, dentre outras coisas, a profissionalização das crianças e dos adolescentes em seu artigo 227.

Esse é um preceito constitucional que pode ser considerado a semeadura da Lei da Aprendizagem e das alterações impostas na Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT) nos artigos afetos ao aprendiz.

Aqui, portanto, recortadas as cotas legalmente impostas pela legislação brasileira: pessoas com deficiência (PCDs) e aprendizagem profissional.

Conforme dito acima, as pessoas com deficiência tendem a encontrar ainda mais resistência dos potenciais empregadores para a admissão e preenchimento de postos de trabalho. Isso, sem sombra de dúvidas, decorre do preconceito que ganhou uma definição própria e mais assertiva: o capacitismo. Entende-se como capacitismo “a ideia de que pessoas com deficiência são inferiores àquelas sem deficiência, tratadas como anormais, incapazes, em comparação com um referencial definido como perfeito” [1].

E tencionando superar esse “pré-conceito” para o qual a sociedade fingia fechar os olhos, o legislados, dando vigência a garantia constitucional prevista no caput de seu artigo 5º — “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes” — em 1991 foi promulgada a Lei de Cotas reservando uma parte dos postos de trabalho para esse grupo de cidadãos.

A Lei 8.213/91, passou a determinar que as empresas que contem com cem ou mais empregados deverão, obrigatoriamente, reservar parte de seus postos de trabalho para contratação exclusiva de pessoas com deficiência ou profissionais reabilitados por determinação do INSS. O percentual, que é calculado sobre a totalidade dos postos existentes, varia de 2% a 5% a depender do número de empregados.

Por óbvio, tal imposição deveria ter vindo acompanhada de programas de desenvolvimento profissional ou de capacitação, o que não ocorreu. Caso existentes tais programas, não há dúvidas de que as pessoas com deficiências contratadas poderiam, efetivamente, concorrerem com os demais empregados em iguais condições pelas posições estratégicas e/ou decisivas dentro da estrutura da empresa.

Já para os aprendizes, a legislação é um pouco mais difusa, perpassando pela CLT e pela recente alteração promovida pelo Decreto 11.061 de 2022, salientando estar, atualmente, em tramitação, na Câmara dos Deputados, o Projeto de Lei 6.461/2019 que tenciona criar o Estatuto do Aprendiz.

Portanto, e de acordo com a norma vigente, toda empresa está obrigada a empregar aprendizes e matriculá-los nos serviços nacionais de aprendizagem. A cota é de 5%, no mínimo, e 15%, no máximo, de cada estabelecimento, baseada nas funções que demandem formação profissional. São excetuadas desta base de cálculos as funções que demandem formação técnico-profissional, graduação em curso superior e cargos de confiança.

A avaliação destas funções que integram a base de cálculo dos aprendizes é feita avaliando os códigos brasileiros de ocupação (CBO) que expressamente indicam a necessidade de formação profissional.

E em razão disso, sempre é recomendado que ao definir os postos de trabalho dentro de sua empresa, seja avaliada, com cautela, quais são as habilidades e conhecimentos necessários ao desenvolvimento da função. Após esse cuidadoso estudo, deverá ser o CBO indicado o mais próximo da atividade efetivamente desenvolvida.

Por exemplo, na indústria farmacêutica, normalmente a força de vendas que é composta, em sua maioria pelos propagandistas, atrai um grande número de aprendizes já que, em seu CBO (3541-50) há previsão expressa para a formação profissional e para sua integração na base de cálculos da aprendizagem. Ainda que a prática de mercado seja que estes profissionais tenham graduação em curso superior, especialmente aqueles que atuam com medicamentos, se não houver uma mudança no CBO, não poderá tal prática ser utilizada para afastar estes profissionais da base de cálculos da aprendizagem.

E aqui fica uma dica e uma provocação para iniciar esta mudança: porque não utilizar da ferramenta disponível pelo próprio governo federal para sugerir e propor alterações nos CBOs já existentes tornando-os, assim, mais próximos da realidade existente?

Retomando, e como se vê dos destaques acima, por se tratar de obrigações legalmente impostas, restará às empresas regularmente operacionais no Brasil simplesmente cumpri-las.

Não observadas as cotas existentes, poderá a empresa ser autuada pelo Ministério do Trabalho e Previdência (MTE), através dos seus auditores fiscais vinculados às Superintendências Regionais do Trabalho. Essa autuação determina, além do imediato cumprimento da norma, a imposição de multas, mantendo-se, ainda, a obrigação de cumprir a cota.

Além disso, também cabe ao Ministério Público do Trabalho (MPT) garantir que estas e outras obrigações sejam integralmente cumpridas por seus destinatários. Quando esse cumprimento não ocorre espontaneamente, o Ministério Público normalmente instaura um processo de investigação (procedimento prévio, inquérito civil, etc.) e, ao final, constatada a irregularidade, apresenta uma proposta de acordo (Termo de Ajustamento de Conduta – TAC) por meio do qual a empresa se obriga a cumprir a obrigação, sob pena de pesadas multas.

Se a empresa recusa a formalização do acordo (lembrando que o TAC é um título executivo extrajudicial, de modo que o descumprimento autoriza, de imediato, a execução forçada do pagamento da multa), o Ministério Público do Trabalho certamente irá ajuizar uma ação civil pública (ACP), o pedido de condenação da empresa no pagamento de indenizações por dano moral coletivo.

No entanto, tal qual a experiência até o advento da pandemia de Covid-19, não era muito frequente a fiscalização, pelos auditores, da maioria das empresas, o que se dava em razão do número insuficiente de profissionais e da falta de investimentos financeiros.

Ocorre que com a pandemia do Covid-19 e a necessidade de distanciamento social, o procedimento de fiscalização passou a ser feito à distância, especialmente os afetos ao cumprimento das cotas.

Passaram os auditores a extrair as informações iniciais dos dados fornecidos pelas empresas ao Governo Federal através, p.ex., do e-social. Após esta etapa, os responsáveis pela fiscalização enviavam, por e-mail (cujo endereço era, muitas vezes, extraído da própria página de internet das empresas) uma notificação para apresentação de documentos (NAD) com o intuito de conferir se a empresa era ou não cumpridora das cotas.

Este novo formato de fiscalização possibilitou sua expansão sobre o tema cotas, vez que desnecessário os deslocamentos para realização de inspeção in loco com a finalidade de conferir o cumprimento de cotas. Certamente em função deste novo formato — fiscalização à distância — o número de empresas fiscalizadas sobre as cotas e, até mesmo, a frequência em que ocorriam, deve ter sofrido forte aumento.

Deste modo, e considerando que as empresas não podem fugir do cumprimento da imposição legal, não seria interessante pensar em como transformar essa obrigação em algo positivo, para além da sociedade, para a própria companhia?

Pensando nisto, e alinhado com a nova tendência do mercado que tem mensurado a importância e valor da empresa através das diretrizes ESG (environmental, social, and corporate governance que, em português, indica meio ambiente, social e governança), por que não fazer desse limão uma limonada?

Pensando no negócio, e na importância estratégica da área de recursos humanos, seria adequada a criação de um projeto que utilizasse dessa imposição da lei para atender, também, um objetivo de desenvolvimento sustentável (ODS) de nº 8 (Trabalho decente e crescimento econômico) estabelecido pela ONU em 2015.

Por que não utilizar esta oportunidade para desenvolver profissionalmente estes grupos — PCDs e aprendizes — com o intuito de capacitá-los para virem a preencher posições cuja dificuldade de contratação é recorrente em sua companhia? Ou, linkando com o dito acima cujo exemplo adotado foram as farmacêuticas e seus propagandistas, por que não aproveitar esta oportunidade advinda das cotas para treinar estes profissionais que, futuramente, poderão vir a preencher dentro da empresa as vagas de propagandistas ou consultores de vendas sem as necessidades atuais de formação?

E, para fazer isto e, especialmente, tirar esse projeto do papel, indispensável a sensibilização do c-level da empresa através de uma linguagem bem compreendida por eles, indicando os benefícios diretos (p.ex. formação – preencher vagas de difícil ocupação), como os indiretos (p.ex. atenção às diretrizes ESG que geram aumento financeiro e melhora de reputação da empresa).

Passando à execução, e tendo os decisores como seus stakeholders, necessário será o treinamento dos gestores diretos que receberam ou receberão estes profissionais ingressantes pelas cotas legais, para que possam fazer o acolhimento adequado. Será o papel destes profissionais, juntamente com a área responsável pela gestão e desenvolvimento de pessoas, permanecer atento às habilidades, dificuldades e necessidades deste grupo de profissionais. Esta etapa é especialmente importante para que o RH possa, de maneira até mesmo personalizada, apresentar propostas de desenvolvimento profissional e adequações funcionais, sempre aproveitando as habilidades de cada um.

E assim procedendo, mais uma vez será o RH o protagonista da aproximação da sua companhia às diretrizes ESG que são, sem sombra de dúvidas, o futuro (diria até presente) do mercado.

*texto elaborado com importante contribuição técnica de Fernanda Chilotti, SVP Pessoas da Marsh Brasil.

Fonte: Site Consultório Jurídico

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